Esta é uma critica de uma comédia canadense do diretor Andrew Currie sobre zumbis ou também conhecidos como mortos-vivos.
Saiu numa revista eletrônica de critica cinematográfica, Revista Pupila, feita pelos alunos de cinema da ECA.
Edição 2, seção "EM FOCO".
http://www.revistapupila.com/
Tenho uma certa predileção por filmes de terror, mais especificamente do subgênero dos mortos-vivos. Um dia escrevo por que acho esse tipo de filme tão interessante.
Abaixo, na íntegra, a critica de "Fido".
FIDO – O MASCOTE
"Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos andarão pela terra." E trabalharão entregando...leite para os vivos?
A frase em aspas pertence ao filme "Despertar dos Mortos"(1978) de George Romero, segundo filme de sua carreira a abordar um universo onde os mortos voltaram à vida e têm fome de carne humana. O clima pessimista do filme de Romero não tem vez em "Fido" (2006) onde os mortos foram cooptados pelo sistema e trabalham cortando grama, entregando jornais, limpando a casa, fazendo qualquer tipo de trabalho braçal. Tudo isso graças a colares eletrônicos que deve ser postos no pescoço dos zumbis que deixam eles mais pacíficos, num estado de torpor que troca a fome de carne humana por “vontade” de trabalhar. Em outras palavras, eles se tornam escravos da classe média.
O filme dirigido pelo diretor canadense Andrew Currie apresenta um novo ponto de vista para o subgênero de terror dos morto-vivos que nos últimos anos vem ganhando novo fôlego. A obra de Currie sucede filmes como "Extermínio" (de Danny Boyle) que vinha numa embalagem de ficção científica e com "Todo Mundo Morto" que colocava o subgênero misturado com a comédia, o que também ocorre aqui. Filmes que fincam suas bases nas obras de terror dos anos 70, que apresentavam uma violência mais crua, real e com finais pessimistas. Isso não foi apenas uma característica apresentada nos filmes de terror.
Toda a cinematografia americana apresentava suas idéias menos hollywoodianas. O país passava por uma crise, já não se acreditava mais no “American Way of Life”. Os EUA mandavam seus jovens para uma guerra perdida no Vietnã, as tramóias políticas vinham à tona, um presidente foi assassinado em frente às câmeras. Com esse balde de água fria, os cineastas captaram essa falência do idealismo, da esperança pra colocar obras mais contundentes no mercado. Nessa época surgia também o filme “A Noite dos Mortos Vivos” (1969) de George Romero, que apresentava uma nação onde os mortos voltavam à vida unicamente para saciar sua fome de carne viva e humana. O filme apresenta uma idéia de como a sociedade reagiria frente a uma crise e como todas as noções de civilização e ordem que temos poderiam ser facilmente quebradas, postas abaixo.
O que aconteceria se os zumbis canibais encontrassem a inocentes donas de casa dos anos 50? Currie dá sua visão desse encontro. O diretor, canadense, se utiliza indubitavelmente da iconografia norte-americana da classe média pós-guerra, fortalecida pela crescente industrialização do país. Carros novos, roupas industriais dão um aspecto homogêneo a todos os personagens, casas com suas cercas coloridas. Porém a guerra aqui não foi feita contra os países do Eixo, mas contra a horda dos mortos. Estamos situados num país não nomeado de uma realidade alternativa, mas os penteados não mentem.
Currie entra num mesmo movimento semelhante à Quentin Tarantino, subvertendo e retrabalhando regras dos gêneros cinematográficos. Aqui o diretor insere a infestação de morto-vivos dentro do "American Way of Life" com aquelas donas-de-casa e seus maridos e suas casas de plástico.
Na primeira cena de “Fido”, vemos um pequeno noticiário informativo nos moldes dos cines-jornal dos anos 50. Nele vemos que a Terra foi atingida por um gás vindo do espaço que reanimou os mortos. Os humanos travaram uma guerra com eles e graças à tecnologia da empresa “ZomCom”, foi possível estudar e domesticar os mortos, além de isola-los fora do perímetro das cidades.
As luzes se acendem e vemos que o noticiário estava sendo passado a uma classe escolar de crianças. Um representante da “ZomCom” aparece na sala de aula pra responder a perguntas. O jovem Timmy Robinson (K´Sun Ray) pergunta se esses seres estão vivos ou mortos. Algumas crianças riem. Então o chefe de segurança fala que os zumbis não são humanos e só tem um objetivo em suas vidas, comer a carne dos mortos. Todas as crianças parecem satisfeitas com a resposta insalubre, mas Timmy ainda tem dúvidas.
A comédia brinca com essa alienação dos habitantes dessa cidade. Eles não se importam de onde eles vêm ou nem como era a vida desses zumbis antes da morte deles. Os zumbis servem apenas como trabalhadores braçais, fazendo seus serviços sem nenhum tipo de remuneração, como simples escravos. E os habitantes simplesmente não ligam para isso ou para qualquer outra coisa a não ser as aparências.
Com a família de Timmy a coisa não é diferente. O pai dele não quer saber da família, com medo de que se possa afeiçoar demais com essas pessoas com quem ele mora. Quem sabe um dia ele tenha que matar eles, caso ele virem zumbis. A mãe só liga para melhorar a visão que os vizinhos têm da própria família e vive infeliz com a frieza do marido. E Timmy, por sua vez, vive sozinho porque os colegas de escola não entendem o lado questionador dele e os pais não ligam pra ele.
Mas logo a relação da família começa a mudar com a chegada de uma nova aquisição: um empregado zumbi. Timmy logo se afeiçoa a criatura e o apelida de Fido. O menino consegue enxergar que havia e talvez ainda exista uma vida por trás daquela fachada do criado-escravo comedor de gente. O longa apresenta uma visão interessante e engraçada de que os zumbis também são gente que nem nós e têm sentimentos. Hum, alguém ai se lembra da xenofobia exacerbada nos últimos anos?
Aliás, o filme apresenta sutis críticas direcionadas à nação mais poderosa do mundo, mas elas nunca chegam e emperrar a narrativa. Como, por exemplo, um comercial de TV que informa que todos ainda podem contribuir com a produtividade da sociedade depois de mortos, como zumbis. E que qualquer um pode comprar; consumimos qualquer coisa que for transformada em produto.
Desde que se tenha um comercial bonito na TV.
Guilherme Shinji